Ter a possibilidade de consultar fatos históricos, é poder voltar ao passado e verificar como foi o estopim da criação para algo que temos dúvida nos dias de hoje. Estes fatos são geralmente contados do ponto de vista de quem possuía o poder naquele momento da história, o que naquela época seria um seleto grupo formado quase que absolutamente por homens.
Por conta disso, ficamos uma grande parte do tempo sem saber que quem estava por trás de grandiosas invenções da humanidade, eram na verdade, realizadas por mulheres. Do primeiro programa desenvolvido para um computador, e até a tecnologia que usamos hoje para acessar a internet sem qualquer conexão com cabos, o Wi-Fi, chegando até a geladeira e também o bote salva-vidas. Todas foram realizações que só puderam chegar até nós hoje, pois uma mulher resolveu que as limitações colocadas por diversos anos e culturas, não seriam o bastante para que ela deixasse de ser imortalizada com a sua invenção verdadeiramente revolucionária.
Mas e se a gente te falasse que um dos maiores símbolos do que entendemos como “masculinidade”, tiver sido criado, desenvolvido e aprimorado por mulheres?
Podemos falar que a cerveja ocupa um lugar simbólico de destaque no universo masculino, mas uma pesquisa da historiadora e sommelier de cerveja inglesa, Jane Peyton, que é autora de três livros sobre a bebida e mais um sobre o gin, mostra que pelo menos até dois séculos atrás, a cerveja era na verdade coisa de mulher, em todos os seus sentidos.
A cerveja era vista como um alimento
As evidências para essa teoria vieram após anos de pesquisa para o novo livro que a autora estava desenvolvendo. Segundo Peyton, em diferentes regiões espalhadas ao redor do planeta, a cerveja era normalmente vista como um alimento, como uma parte do cardápio da família, e que logo era também considerado parte das “tarefas domésticas” que eram reservadas às mulheres.
Muito além de uma criação, o processo de fabricação da cerveja era uma tarefa exclusivamente realizada por mulheres durante muitos séculos. O que inicialmente era realizado como uma tarefa da casa, passou rapidamente a se tornar uma especialidade muito apreciada, sendo inclusive uma fonte de renda extra para estas mulheres que vendiam, e em pouco tempo a cerveja passou a ser uma bebida feita por mulheres, devido ao fato de conhecerem todos os segredos e terem a mão diversas receitas, mas basicamente era mesmo porque elas fabricavam uma cerveja muito melhor.
Os bares eram “coisa de mulher” na antiguidade
Os resultados da pesquisa que a autora Peyton chegou, remete há cerca de 10 mil anos atrás, e mostra dados que confirmam que, se temos tanta variação de aromas e sabores espalhados por todo o mundo, isso só foi possível devido ao trabalho das mulheres.
Há pelo menos 7 mil anos antes, na antiga Mesopotâmia e também na Suméria, era justamente esse tipo de conhecimento especial, e de certa forma exclusivo, que tornou a invenção da cerveja, uma exclusivamente das mulheres, que também tinham o monopólio da administração das tabernas, que eram os bares naquela época, e esse tipo de estabelecimento era um negócio “de mulher”.
De um modo geral a cerveja sempre foi considerada um presente de uma deusa nas sociedades mais antigas, nunca de um deus masculino.
A cerveja era um meio de incrementar o orçamento familiar
As cervejas produzidas na época dos famosos vikings, eram produzidas também pelas mulheres, e era assim da mesma forma em todas as sociedades que fazem parte do norte da Europa.
As mulheres produziam a cerveja em casa também na Inglaterra, e vendiam para vizinhos e comerciantes como um meio de incrementar o orçamento familiar. Estas mulheres eram conhecidas como “Alewifes”, que traduzido ao pé da letra acaba sendo conhecido como esposas-Ale, ou esposas da cerveja.
A rainha Elizabeth I tomava cerveja em todas as refeições
Acabou sendo na popular Inglaterra onde a cerveja acabou se popularizando mais, tornando um dos mais importantes lugares para a bebida.
A cerveja começou a fazer parte da rotina e das refeições de todas as famílias, inclusive no café da manhã, que era muito praticado pela rainha Elizabeth I, uma das mais fervorosas amantes da bebida, que sempre falava que “uma refeição perfeita é feita com pão, queijo e cerveja”.
Apesar do fervoroso apreço da rainha Elisabeth I pela cerveja, e todos tendo a identificação total desse mundo com as mulheres, é previsto que foi mais ou menos nessa época que o desenvolvimento e a fabricação da bebida começaram a ser tomado das mãos das mulheres, e aos poucos começou a sofrer uma ressignificação como um elemento do mundo masculino.
As bruxas eram fabricantes de cerveja
No meio desse contexto e também passando pela crise da Idade Média, temos o início do que conhecemos hoje como capitalismo. Muitos movimentos começaram a ser considerados “hereges” tanto pelo estado, como também pela igreja, e estes movimentos eram ferozmente perseguidos, incluindo todo e qualquer tipo de irmandade ou organização feminina.
O período que acabou ficando conhecido como Caça às Bruxas começou dessa forma, e foi também no meio dessa confusão toda que o processo de fabricação da cerveja começou a ser transferido para os homens, e segundo Peyton, boa parte do que imaginamos atualmente como sendo uma definição da figura de uma bruxa, nasceu do contexto dentro dessa fabricação de cervejas, tendo muitas dessas consideras “bruxas” sendo na verdade, simples mulheres cervejeiras.
Na pesquisa que a autora fez, ela mostra que para realizar o processo de fabricação da cerveja, era necessário um grande caldeirão, e durante esse processo o líquido começava a fermentar, e o caldeirão passava a borbulhar e se mover diante dos olhos, como se fosse uma poção mágica.
Um grande pedaço de madeira com um ramo amarrado na ponta, era utilizado para mexer o líquido no caldeirão, o que pode ser considerado muito similar a uma vassoura, figura carimbada em todas as ilustrações de bruxa que temos atualmente.
E para finalizar, como o processo de fabricação requer cereais como por exemplo, o malte, era um ambiente muito propício para o aparecimento de pragas como os ratos, e nada melhor para caçar ratos do que um gato.
Esta feita a caricatura padrão de uma bruxa pra muitas histórias de terror: caldeirão grande de ferro, poção mágica, vassoura e um gato.
Segundo Peyton, muitas das mulheres da época, acusadas de praticarem bruxarias, foram mortas em centenas de milhares de fogueiras nessa perseguição, mas na verdade eram as mulheres que fabricavam as melhores cerveja da idade média.
A “vassoura” acabava pendurada na porta das casas dessas mulheres somente para indicar que ali se vendia cerveja.
As mulheres perderam o protagonismo na revolução industrial
Na segunda metade do século XVIII, foi mais ou menos quando começou o processo da Revolução Industrial, e com isso vieram inúmeras tecnologias e aprimoramentos dos métodos de fabricação de todas as indústrias, e com isso diminuiu de modo geral a necessidade das mulheres no processo de fabricação da cerveja.
O processo agora era feito em larga escala, e nesse período esse trabalho começou a ser feito fora de casa, nas grandes indústrias. Enquanto as mulheres acabavam ficando mais nos lares, esse processo acabou se tornando quase que exclusivamente uma atribuição masculina.
Como se não bastasse, por lei em alguns países, as mulheres não podiam ser as proprietárias de qualquer tipo de propriedade, nem ter qualquer pedido de empréstimo aprovado nos bancos, e isso acabou impedindo muitas mulheres de abrirem sua própria fábrica de cerveja ou estabelecimento para a venda do produto.
Já perto do final do século XVIII, não só a fabricação havia se tornado um trabalho totalmente masculino, como também toda a cadeia de vendas nos bares e a própria cultura que começou a ser formada ao redor da cerveja.
Então da próxima vez que estiver na companhia de uma mulher, e chegar na sua cabeça a suposição de que ela prefere tomar vinho somente por ser uma mulher, vale lembrar de toda a história da cerveja é essencialmente feminina, e que levou essa famosa bebida a se tornar uma preferência por nós, e por todo o mundo.
Se hoje tomamos uma deliciosa cerveja gelada e saborosa, é graças ao trabalho dessas mulheres, das bruxas e muitas outras gerações de moças cervejeiras, que nos apresentaram uma verdadeira invenção divina: o presente de uma deusa.